Todo o questionamento acerca da herança digital e de bens digitais esbarra em um campo bastante complexo do Direito. Isso porque a digitalização de diversos aspectos da sociedade é algo relativamente novo, e mesmo que os legisladores tentem acompanhar as mudanças, elas acontecem em uma velocidade maior.
O artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso XXX, é bastante claro ao estabelecer a herança como um direito fundamental do cidadão. Contudo, a transferência do patrimônio de uma pessoa que morreu para seus herdeiros enfrenta um dilema nos tempos modernos: os bens digitais.
Até pouco tempo atrás, o processo de herança era composto pelos bens físicos da pessoa falecida. O que incluía, por exemplo, imóveis, propriedades, automóveis, jóias, quadros, valores em espécie ou guardados no banco, entre outros. Já os bens imateriais, como obras de literatura, personagens, músicas e demais, encontravam respaldo na Lei de Direito Autoral.
Mas tudo isso mudou quando o digital começou a ganhar mais relevância na sociedade, redesenhando conceitos, profissões, entendimento sobre privacidade e até mesmo gerando novos ativos econômicos, como NFT e criptomoedas.
Dessa forma, surgem questionamentos como: o que fazer com os perfis em redes sociais de pessoas falecidas? Um canal monetizado do YouTube deve passar para o herdeiro? Websites, criptomoedas, fotos e vídeos armazenados na internet entram no espólio?
Para encontrar as respostas para essas e outras perguntas envolvendo bens digitais, convidamos você a continuar a leitura deste artigo!
O que é Herança Digital?
A sucessão post mortem, no que se refere ao patrimônio digital, fez surgir o termo herança digital. Este, ganhou relevância à medida que as pessoas começaram a armazenar informações e bens digitais em nuvem e a exercer atividades econômicas na internet, como a monetização de canais do YouTube ou atividades relacionadas a criptomoedas.
A herança digital se refere ao processo de transferência de patrimônio digital após o falecimento do titular. Este patrimônio é constituído por bens incorpóreos, que podem ter valor econômico e/ou afetivo, conforme a seguinte classificação:
Bens digitais patrimoniais
Bens digitais patrimoniais são todos os bens de natureza predominantemente econômica. Ou seja, aqueles que geram consequências financeiras e, portanto, entram no espólio sem grandes questionamentos jurídicos, sendo repartidos conforme estabelecido nas leis de sucessão.
Exemplos de bens digitais patrimoniais:
- Criptomoedas (moedas virtuais);
- NFTs;
- Domínios de websites;
- Aplicativos;
- Cupons eletrônicos;
- Milhas aéreas;
- Pontos de cartão de crédito;
- Jogos online pagos;
- Perfis pessoais e/ou profissionais nas redes sociais que atraem publicidade;
- Canais do YouTube monetizados;
- Jogos de videogame digitais e as bibliotecas, videotecas e discotecas virtuais.
Bens digitais existenciais
Os bens digitais existenciais são os conteúdos preservados em plataformas em nuvem que carregam valor sentimental e afetivo, mas não financeiro. Essa categoria esbarra no direito à pessoalidade e à privacidade. Assim, juristas e advogados divergem quanto ao tema. Para alguns, predomina a tese de que esse tipo de herança só deve ser compartilhado quando está expressamente registrado em testamento.
Exemplos de bens digitais existenciais:
- Perfis, não monetizados, em redes sociais;
- Fotografias e vídeos pessoais, armazenados em redes sociais ou nuvem (Dropbox, iCloud, Google drive, etc);
- Mensagens de textos trocadas em aplicativos de mensagens, redes sociais ou e-mail;
Na maioria dos casos, segue-se o que cada plataforma estipula em seus termos de contrato. Por exemplo, o Facebook oferece a opção de converter o perfil em uma “página de memorial” ou selecionar um herdeiro para administrar a conta. O Google (Youtube, Gmail, Drive) deixa o usuário configurar o destino da sua conta, ou a funcionalidade que desativa todas as contas após um período de inatividade.
Há ainda, os bens digitais de caráter patrimoniais-existenciais. Nesse grupo, estão todos os bens que possuem uma natureza híbrida de valor econômico e emocional. Trata-se de algum conteúdo que, por conta das características do ambiente virtual, desperta interesse e gera receita. São exemplos desses bens digitais os blogs pessoais e perfis em redes sociais.
Alguns casos emblemáticos ao longo dos anos:
- Alemanha, 2015. Um dos casos pioneiros sobre herança digital no mundo. Nesse episódio, o tribunal alemão decidiu que os pais de uma adolescente falecida poderiam acessar a conta do Facebook para determinar se sua morte foi um suicídio motivado por perseguição psicológica. Apesar de o Facebook alegar o direito da privacidade para não fornecer os dados, o Tribunal alemão aplicou o princípio da sucessão universal.
- Brasil, 2018. O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que os pais de uma mulher falecida tinham o direito de acessar as contas de redes sociais dela para obter informações sobre sua vida e morte.
- Brasil, 2021. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou que uma mãe tivesse acesso ao Facebook de sua filha falecida. O argumento foi que a conta em rede social, por não possuir conteúdo patrimonial, era intransmissível, constituindo direito personalíssimo da usuária inicial. Além disso, como a pessoa falecida não optou por apagar os dados ou transformar o perfil em memorial, não poderiam seus familiares tomar posse (Apelação 1119688-66.2019.8.26.0100, julgada em 9/3/2021 pela 31ª. Câmara de Direito Privado).
Importância do testamento digital
É evidente que o tema herança digital está evoluindo e ganhando mais relevância no meio jurídico, principalmente com casos crescentes de pessoas que precisam lidar com questões relacionadas aos bens digitais de seus entes falecidos.
Com isso, é importante que as pessoas estejam cientes dessas questões ainda em vida, para que tomem medidas de assegurar que seus bens digitais sejam distribuídos conforme seu desejo após a morte.
Justamente por ainda não existir uma regulação específica no Brasil sobre herança digital, seja no Código Civil de 2002, no Marco Civil da Internet ou na Lei Geral de Proteção de Dados brasileira (LGPD), a recomendação é que a pessoa deixe seus desejos e vontades registrados em testamento.
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